10 de dez. de 2009

Rui ou "As Aparências Enganam"!

(Conto baseado em história real)

_ Ninguém fala mal da minha mãe! (gritou o garoto mirando o oponente com raiva nos olhos)

_ Pois, eu repito o que disse! (reiterou o outro rindo)

Maldita e pejorativa, a frase lhe escapuliu dos lábios, qual cuspidela fétida de tuberculose terminal,  levantando uma onda de risos e provocações do bando reunido.

O menino olhava o inimigo com os olhos injetados de sangue. Era pequeno, talvez 10 anos, franzino e branquinho, de cabelo louro como uma espiga de trigo madura e certamente mais fraco que o adversário.  Sem medir as consequências de seu ato fútil, carregou sobre o outro cheio de fúria justificada.

O grandalhão, bem uns 15 anos, braços de homem acostumado ao trabalho pesado limitou-se a se desviar ligeiramente e aproveitar o embalo do garoto para o projetar sobre o chão de cascalho.  A patota riu alto, divertida.   As provocações e gargalhadas cresciam de tom à medida que o desastre era mais evidente.

Levantando-se a custo, com os braços ralados e ardendo e as calças já rasgadas a criança não se conteve.  No seu rosto lia-se um misto de medo, susto, indignação e ódio.   Não aceitaria aquela situação enquanto ainda tivesse um pouco de dignidade.  Tentou novo assalto.  Desta vez foi mais moderado e cuidadoso.  O chão de pedrinhas e alcatrão não era nada convidativo.

O resultado foi tão mal ou pior do que o anterior.  O saldo foi um olho negro e toda a turma o rodeando com insultos.  Ele se deixou ficar no chão chorando baixinho, derrotado, humilhado, destruído.

Aquela tinha sido a vingança covarde dos que não podiam competir com ele na sala de aula . Desde que chegara ali não se limitara a ser estrangeiro, o “russinho”, o protestante. Era também o melhor aluno em tudo, querido e admirado dos professores, bajulado dos pais, bem visto pelas meninas. Estas coisas se pagam caro aos 10 anos. E o carrasco fora bem escolhido!

O Rui não era muito alto, mas trabalhava como ajudante de mecânico há vários anos e ganhara músculos de ferro.  Era repetente já de fama maior, só por isso ainda circulava entre a criançada.  No dia a dia era pacato e calmo, sempre bem disposto e de olhar submisso.  Mas o tinham excitado com mentiras e provocado até que servisse de vingador sobre o loirinho.

Ele cumprira seu papel sem grande gosto.  Até uma ponta de remorso parecia o atacar,  mas o coração embrutecido de adolescente que não tivera infância não se deixava tomar de ternura.   A única linguagem que conhecia era a da violência.   Em casa e na oficina era ele que apanhava.   Ali , quem dava as cartas primeiro era ele e se não era grande motivo de orgulho vista a diferença de tamanhos, servia-lhe perfeitamente de compensação.

Magoado de corpo e alma o garotinho encetou o caminho de casa.  Foi um autêntico calvário com os demais a seguirem–no de perto com os mesmos palavrões e provocações de antes e os risos.   O olhar das pessoas que o viam rasgado e podiam ler na sua órbita roxa o desfecho pouco feliz de uma luta infantil era duro de enfrentar.   Mas, o pior era o medo da reação paterna e as consequências que daí poderiam advir.   Foi longa a estrada...

Ele nem reparou na beleza do caminho, no recorte dos campos divididos por muros de pedras artisticamente desenhados, a brancura da cal das casinhas que pareciam mais de bonecas que de gente, o vermelho das telhas portuguesas a contrastar com o azul do céu, o gado gordo e malhado a preto e branco que pintava a paisagem qual postal holandês.   O estado de alma não lhe permitia ver nada a não ser as pedras frias da estrada de paralélepipedos antigos e alguns tufos de grama que teimavam em crescer aqui e além por entre as pedras desafiando os carros que passavam por ali sem sequer os notar.

Finalmente perdeu o cortejo blasfemador ao chegar à sua rua.  Mas isso não lhe aliviara o coração.   Restava enfrentar a familia e isso ele teria que o fazer sozinho.   E ali estava sua casa.   O sobrado mal pintado, a loja por baixo e a casa por cima, com vista para o interior.
Felizmente, a reação paterna foi bem mais suave do que ele previra.  Sua explicação do motivo da briga parecera ter servido de amortecedor ao estado triste em que se apresentava. Nem sequer se mencionou o fato de ter a roupa rasgada e o olho negro. Ficara apenas a promessa do progenitor:

- Amanhã estarei à tua espera na saída das aulas para que me mostres quem é esse Rui!

Aquilo entrou-lhe na alma como profecia messiânica!  Teria afinal vingança, um salvador surgiria do fundo de um carro verde e como no grande e terrível dia do Senhor!  Ele espalharia o terror entre as hostes de escarnecedores que o importunavam,  e a partir dali reinaria soberano sobre toda a escola e arredores!

A noite chegou sem sono, apenas a grande expectativa de ter a honra lavada, do nome limpo e exaltado.  O Rui saberia quem ele era e que não estava só no mundo, por mais que se pensasse o contrário.  O pai subia-lhe no conceito uns dez degraus.  Sua pose masculina e séria afirmando que resolveria o problema, de repente, lhe pareceu ver nele músculos que nunca antes notara com o peito largo de um boxeador, as mãos grandes e apropriadas.  Aquele seria um combate desigual, como fora o seu.   A sede de vingança tomara conta do garoto e somente de madrugada adormeceu, com sonhos de cargas de cavalaria e massacre de exércitos rivais, com muito sangue e dor, muita dor para o inimigo...

As aulas no dia seguinte foram um total desperdício.  Como prestar atenção nos professores com a expectativa que o consumia por dentro?  Olhava o rosto impávido do Rui, desconhecendo a destruição que o aguardava e isso lhe trazia tamanha satisfação que ria sem querer e procurava evitar tal reação, não fosse ela denunciá-lo.

Por duas ou três vezes durante a longa manhã tivera momentos de rara lucidez em que duvidou da vinda do pai ou do cumprimento da promessa.  Mas, afogara a razão no seu lago de vingança.  A injustiça tinha que ser resolvida, era urgente e necessária a retribuição.   A vida lhe parecia sem sentido sem aquele corretivo dado ao mau elemento e à sua corja.

Finalmente, o último sinal soou, como trombeta divina, e lá estava o carro verde e o salvador imponente e com ar decidido.   Aproximou-se tremendo e o pai o saudou perguntando:
- Quem é o Rui?
- É aquele! (mostrou-lhe excitado)

Aquele tolo ali, metido a esperto, que não sabe nada de história, nem de português  ou de Inglês, ou matemática, ou seja que matéria for.   Aquele ali que só sabe dar caneladas no futebol, se assoa para o chão, cospe a torto e a direito e diz palavrões.   É aquele ali, com ar de parvo que nunca vai saber mais do que 2 + 2 e que merecia ser aniquilado como verme que era!

Já o pai galgara o espaço que o separava do guri.  A mão erguera-se no ar e o menino esperou o barulho do primeiro estalo com os olhos semi-cerrados.  Mas, qual quê?  O pai apenas pousara a mão suavemente sobre o ombro do inimigo e lhe falava amistosamente,  convidando a aproveitar a carona até à vila.

Atordoado, o garoto tentou tirar sentido de tudo aquilo.  Seria verdade tamanha traição? Podia o pai ser tão falso a ponto de o desfeitear de maneira tão vil?  E então lhe veio a luz... É claro!   O pai não podia bater no Rui ali à frente de todos!  Ele era um homem de respeito na sociedade local, isso não lhe ficaria bem.   A carona era o engodo para levar o Rui até um descampado, onde o corretivo seria aplicado.  Neste momento, a sabedoria do homem parecia realmente superior!  Afinal é verdade esta tão propalada superioridade dos adultos!

O Rui caíra na armadilha.  Aceitara a carona e se instalara no banco da frente, ao lado do motorista.  O menino atrás contava os minutos até o local do esperado massacre.  Porém, o carro se dirigia estupidamente para a vila, pelo caminho mais curto e povoado.   O pai falava mansamente ao Rui sobre o sucedido como  se tivesse ocorrido um erro ligeiro.  Queria a ajuda do rapagão para futuros erros do menino?!!  Ele era o pai e ele deveria corrigir o filho, não um qualquer na rua. 

Terminaram fazendo uma espécie de pacto.   Se o garoto fizesse ou dissesse algo errado, o Rui tinha permissão para o denunciar ao Pai,que lhe aplicaria a disciplina devida à falta em causa. E assim se despediram na frente da casa do moço.

A criança no banco de trás desaparecera em sua decepção. Lágrimas sentidas lhe queimavam os olhos numa nova humilhação tão dificil de suportar quanto inesperada.  Jamais teria esperado isso do próprio pai!   Fora entregue como se fosse ele o verdadeiro culpado.  Será que o homem não vira logo no rosto do Rui que era ele o culpado, que era ele o mau da estória?

O dia se arrastou qual caracol paralítico, sem ânimo, sem interesse, sem remissão.  O menino se sentia traído, ultrajado e só.  Como poderia enfrentar a escola?  Como olhar para o grupo de escarnecedores?  Como encarar o Rui?  Tudo parecia desfocado e em meio a uma névoa de dúvida. A própria questão da justiça e do direito tinham sido violadas.  E logo por quem se supunha ser o defensor sagrado de tudo o que era virtuoso na vida!

O que o garoto não sabia é que aquela conversa a que ele chamara traição tivera o mais profundo efeito no Rui.  O moço, acostumado ao punho de aço do padastro e ao trabalho duro desde menino, nunca tivera alguém que o tratasse como igual.  Nunca experimentara a palavra de confiança e respeito. Jamais encarara o olhar limpo de franqueza que conhecera nesse dia.

Aquela conversa e mais do que isso, aquela atitude o resgatara verdadeiramente!  Tinham lhe dado uma nova visão do mundo, da vida e da própria humanidade.  Uma centelha de honra e dignidade foi acendida em seu coração, e mesmo sem saber bem o que fazer com ela o rapaz sentia que era algo tão bom que precisava ser valorizado.  No seu coração de pedra surgira uma brecha e ali poderia brotar uma flôr de esperança e, quem sabe, se suas raizes não abririam outras brechas, deixando que a alma florisse em botão e a vida sorrisse afinal?

No dia seguinte,  Rui olhou o loirinho com simpatia e quase carinho.   Sem perceber ele era já parte essencial da solução do problema do garotinho assustado.  E foi assim que, para surpresa do menino,  quando dois malandros troçadores se aproximaram dele com más intenções, o gigante mecânico se interpôs e disse de sobrolho carregado e punho fechado numa voz rouca:

- Se tocar no miúdo, vai ter que se ver comigo ...


( Baseado em Romanos 8:28 )

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Joed Venturini

6 comentários:

Leonardo Martins disse...

Joed,

Conheço os personagens e me lembro da história.
Que bom que você a escreveu porque conforta meu coração. E será bênção para outros que a lerem também.

Do seu amigo,

Leo.

Joed Venturini disse...

Caro Léo,
Escrevi este conto há alguns anos e já nào me lembrava da dramaticidade do texto. O curioso é que foi assim mesmo que aconteceu. E fica como exemplo da maneira como o Senhor muitas vezes nos trata.

Lu disse...

Pr. Joed,

Primeiramente, obrigada por abençoar nossas vidas com seus escritos e pelo seu exemplo.
Que Deus o abençoe muito!


Eu gostaria de comprar alguns livros que o Sr. escreveu como Sonho de Demba, as Aparências Enganam, mas eu não sei onde adquirir esses livros.

O Sr. poderia me ajudar?

Obrigada,
Luciana

Joed Venturini disse...

Cara irmã Luciana,
O livro Sonho do Demba já esgotou a edição, e "As aparências Enganam" não foi publicado. Estão à disposição para download no blog Joed Venturini, seção obras do autor. Fique à vontade para reproduzir estes contos. Em breve disponibilizaremos mais contos para download.
Desejamos que sejam bênção para sua vida.

Reilson disse...

Lindo. Pastor conheci um pouco do teu trabalho este ano com meu professor de missiologia. Tenho sido grandemente abençoado-FORTE ABRAÇO

Anônimo disse...

Seus textos são de uma profundidade ímpar. Falam à alma. A forma como se expressa é cativante e indescritível. Mostra cada história por um ângulo inimaginado, mas que nos faz vivenciar cada emoção.