9 de jan. de 2010

NICO, O VALENTÃO

Ele era um formigão famoso em todo o formigueiro, apesar deste ter algumas centenas de milhares de elementos. Seu tamanho e porte, sua cabeça enorme em forma de ampola e as mandíbulas desenvolvidas não deixavam dúvida de que pertencia à casta dos soldados e era conhecido por Nico, o valentão.

Nico era um formigão conhecido pela força e dedicação cega ao trabalho. Era um líder no seu meio. Sua  capacidade de liderança e sua cabeça fria nas horas de urgência eram características que lhe tinham valido honra e merecidamente sua palavra era tida como de grande valor. É verdade que, em muitas ocasiões tornava-se bravo e temperamental. Não aceitava contestação e se uma ordem sua não fosse obedecida rapidamente, podia acarretar sérios problemas para a formiga em causa.  Mas, apesar disso era estimado, respeitado e um dos favoritos da rainha.

Certo dia, depois do trabalho árduo e cansativo guardando um carreiro de carregadeiras, o valente Nico e seu pelotão voltavam ao formigueiro, desejosos de um bom descanso, quando repararam que a entrada do ninho estava desprotegida. Os vigias de serviço não estavam em seus postos!  Nico ficou imediatamente irritado com a falta de disciplina dos guardas da colônia.  Afinal, ser soldado era um posto de importância capital para a sobrevivência do formigueiro e Nico nunca deixava que seus liderados esquecessem disso. Para ele não podia haver desculpa para tamanha falta de responsabilidade!

O formigão seguiu furioso pelos túneis até uma galeria de grandes proporções onde a  maioria do formigueiro se encontrava reunida.  Era a galeria central, onde habitava a rainha, querida e venerada.  Ela ali estava, soberana e mãe da colônia com seu enorme abdomen desenvolvido, sinal claro da continuidade e do crescimento da população local.

Ali estavam também representantes de todas as castas do formigueiro. As jardineiras, que tratavam do cultivo do fungo que alimentava a colônia; as operárias, que limpavam as galerias e abriam novos túneis para o crescimento do ninho; as carregadeiras, que cortavam e transportavam tudo o que achavam para servir de provisão à colônia e os soldados que protegiam as demais.

Havia silêncio quase total. No centro das atenções estava uma pequena carregadeira que trêmula e com voz embargada falava perante a atenção de todas as demais:

_ Foi impressionante! (dizia a formiguinha emocionada) Uma experiência única que jamais esquecerei!  Tinha terminado de cortar umas folhas e as estava puxando quando notei que me perdera do restante carreiro.  Fiquei preocupada mas não entrei em pânico, porque já me sucedera outras vezes.  De repente, a terra começou a tremer de forma rítmica e o sol ficou tapado, fazendo-se uma escuridão medonha.  Uma figura enorme estava diante de mim e eu tremia toda. Não podia vê-lo, pois ultrapassava em muito o meu campo de visão mas vi algo que parecia ser uma pequena parte dele e era gigantesco!  Senti o medo tomando conta de mim e já não sabia o que fazer. Percebi que a qualquer momento seria esmagada. Não tinha dúvida de que se tratava de um homem.  No entanto, percebi nitidamente que ele parou ao me ver e desviou-se propositadamente para não me matar.  Senti uma enorme sensação de humildade e insignificância me invadir à medida que o homem se afastava.  Senti também uma grande gratidão por ele me ter poupado a vida.

Uma exclamação de admiração percorreu toda a audiência reunida e um burburinho cresceu à medida que se comentava o relato acabado de ouvir.  A formiguinha, já mais contida, parecia acrescentar mais pormenores de sua aventura junto à rainha, que a ouvia cercada de sua servidoras.  De repente, todas foram interrompidas em seus pensamentos pela voz forte de Nico que se elevou sobre as cabeças:

_Será possível que estamos outra vez às voltas com estas estórias sobre o homem?

Enquanto falava o formigão avançava pelo meio da assembléia e todos abriam caminho.  Ele prosseguiu erguendo a grande cabeça com as mandíbulas ameaçadoras.  Chegando ao centro das atenções fez uma breve curvatura de saudação à rainha e olhando firmemente o grupo reunido, que parecia se encolher perante seu carisma, continuou:

_Por que a entrada da colônia ficou desprotegida? Por que os vigias não estão tratando de suas responsabilidades? Julgam que ser soldado é brincadeira? Passam o tempo de sentinela passeando e ouvindo estórias?

Houve comoção no grupo de soldados e imediatamente alguns saíram na direção da entrada do formigueiro sem esperar mais as zangas do comandante Nico.

_Por que o trabalho parou? Não há necessidade de novas galerias? Por que estão descansando as operárias? Não há alimento a cultivar e provisões a transportar? Por que parou o armazenamento de alimentos? Logo agora que estamos quase no Inverno e vai se aproximando o tempo de revoada em que nossa princesa irá lançar as bases de uma nova colônia ? Justamente agora é que resolvemos tirar férias?

As palavras de Nico ressoavam pelas câmaras e túneis como tremendas acusações que penetravam fundo os corações serviçais e trabalhadores das formigas. O constrangimento era visível em todos os lados e sinais de vergonha se tornavam também evidentes.

_Tudo parado! (continuava Nico) Tudo desprotegido por causa de mais um relato absurdo sobre esse ser extraordinário que chamam de homem.  Uma figura mítica que os mais velhos criaram para explicar o que não podiam entender.  Será possível que nunca progrediremos? Será que nunca iremos ultrapassar esse estágio primitivo de pensamento que precisa crer no homem como se fosse real?

_Jamais encontraram provas concludentes de sua existência!  São sempre relatos como o de hoje, baseados na emoção e nos sentidos!  Relatos que pecam por não serem objetivos e racionais. Tudo o que temos atribuído ao homem pode ser bem explicado sem necessidade de crermos em sua existência ridícula. Não precisamos mais dessa fuga.  Onde é que já se viu um ser como esse que descrevem? Não existe coisa semelhante! Não é lógico acreditarmos em algo que não vimos nem analisamos ao pormenor. Temos que crescer e avançar no tempo. O homem é estória do passado! Uma explicação caduca que serviu aos formigueiros de nossos avós, mas já não serve para nós! Deixemos pois de conversa e voltemos ao trabalho!

Não foi preciso mais incentivo. Perante tal convicção e argumento todos aceitaram o veredito sem discussão. A formiguinha que dera seu testemunho saía envergonhada e de cabeça baixa, enquanto as demais regressavam a seus postos de trabalho para dar continuidade às tarefas do dia a dia.

Nico, feliz e triunfante, conferenciou ainda um pouco com a rainha, deu algumas ordens a seus subordinados e recolheu-se à sua galeria, na imensidão escura do formigueiro. Porém,  logo à entrada deparou-se com um formigão soldado, já idoso, que o esperava.  Tentou fingir naturalidade ao vê-lo, mas estava visivelmente contrariado, pois já imaginava a discussão que se seguiria.

_A que devo a inesperada honra? (perguntou Nico com sarcasmo)

_Creio que já sabes muito bem o motivo de minha visita! (respondeu o formigão com seriedade)

_Pois então diga Fredo.  Estou errado não é ?

_Exatamente!

_Poupe-me, por favor!  Meu dia foi cansativo e sinceramente já estou farto de suas tentativas de explicar o homem.

_E eu estou cansado de tua arrogância e falta de piedade. Humilhas-te aquela formiguinha, sem necessidade e de forma impiedosa!

_Ora, aquela estória era ridícula Fredo! (reclamou Nico com pouca paciência) Tremores de terra, o sol sendo tapado. Onde é que já se viu um ser capaz de fazer tremer a terra ou tapar o sol? É ridículo e inaceitável!  Milagres não existem, é tudo fruto do delírio dos mais fracos!  Quando muito uma nuvem mais carregada tapou o sol e o tremor deve ter sido provocado por uma fruta que despencou-se de uma árvore ou mesmo a própria carregadeira que tropeçou.  Para mim, ela inventou tudo para se desculpar do fato de ter perdido o carreiro e chegado à colônia sem carga!

_Não podes afirmar isso Nico! A experiência pessoal de outra formiga deveria merecer mais consideração da tua parte!

_E mereceria, se o assunto fosse mais importante e a experiência mais séria. Mas numa questão deste quilate não se deve brincar! Chega de utopia e sonho! Está na hora de resolvermos isto de uma vez por todas!

_O homem é irreal? É isso que queres dizer?

_Evidentemente!

_E os nossos antepassados que o afirmaram,estavam errados?

_Tinham limitações por falta de desenvolvimento e evolução. Mas estamos agora numa nova era onde podemos ver mais e melhor!Declaro com solenidade que o homem esta morto!

_ E as formigas de nossa colônia e de outras que têm experiências como as que ouvimos hoje também estão erradas?

_Sim! Tudo não passa de condicionamento emocional! A mente acredita naquilo que foi preparada para acreditar. Essas formigas foram programadas para crer nessas estórias e não conseguem racionalizar para além do que lhes foi incutido.

_Como és tão insensível? Acreditas mesmo que estais mais certo que milhões de outras formigas? Não te parece presunção demais?

Não é presunção! É realismo, raciocínio, modernidade! Não houve bases verdadeiras para que cresse de modo diferente. Por exemplo: por que não podemos ver esse tal de homem, se é tão real?

_ Ele é grande demais para nossos pequeninos campos de visão. Só podemos ver suas extremidades.

_Desculpa esfarrapada! Sempre dizem o mesmo. Jogam essa estória de grandeza. Como se esse ser fosse de outra dimensão e então tudo se explicasse. Pois não me convence!

_Mas,o que me dizes às coisas que o homem faz? Os campos trabalhados, as enormes construções e tantas outras coisas. As obras do homem provam sua existência e por meio da grandiosidade dessas obras podemos ter uma ideia do carater do homem e da sua própria grandeza.

_ A natureza é poderosa. Ela pode explicar as coisas que querem atribuir ao homem. Nós as formigas é que somos grandiosas!

_ Estás rejeitando algo que pode vir a ser fatal Nico. Lembra-te que fui eu que te ensinei tudo o que sabes. Era eu o líder dos soldados antes que tivesses idade para isso. Não desprezes o que não podes entender simplesmente porque te ultrapassa.  Pode ser realmente perigoso!

_ Desculpa Fredo. Eu te respeito e agradeço por tudo que me ensinou. Sou agradecido por ter me dado tanto de seu tempo e atenção, mas neste ponto não podemos estar de acordo. A realidade para nós formigas e o que nos é vital é o nosso formigueiro e o nosso trabalho. Isso sim é fatal se o negligenciarmos como no caso de hoje. O que deve nos mover é o trabalho!

_ Somos seres especiais e admiráveis! Em vez de ficarmos olhando para a suposta grandeza de um ser imaginário deveriamos nos concentrar na nossa grandeza que sobressai em todo o reino animal.

_ Quem tem a organização que nós temos? Quem dispõe de um sistema de classes tão elaborado e funcional? Quem apresenta união e solidariedade como a nossa que nos ajuda a suplantar nosso pequeno tamanho? Quem pode competir conosco em trabalho, capacidade de resistência e provisionamento para os tempos dificeis? Que outro ser pode criar a partir de um simples elemento uma colônia de dezenas de milhares em questão de dias?

_ Enquanto outros animais ainda lutam sozinhos para sobreviver nós somos evoluidas e lhes mostramos o valor da união que é a verdadeira força! Essa é a nossa realidade, a nossa dimensão e o resto não interessa! Por isso Fredo, por favor não me canses mais! Não quero gastar mais tempo discutindo sobre estórias fantasiosas!

Fora o suficiente para Fredo. Para ele, que fora o mestre de Nico e que o apresentara para seu substituto, era muito doloroso ver o orgulho intelectual a que seu ex-aluno estava arraigado. Nada mais poderia fazer por ele! Só deixar que o tempo trabalhasse ..

Nico ficou sossegado e certo da vitória sobre o oponente. Ele estava obviamente certo e todos os demais errados! Nem valia a pena discutir. Era jogar conversa fora! Seus argumentos eram por demais superiores. A palavra dos outros era totalmente sem fundamento e confortado por esse sucesso retumbante Nico dormiu sossegado.

No dia seguinte levantou-se cedo para o trabalho como era seu hábito. No seu trajeto habitual pelos longos túneis do formigueiro ficou contente em constatar que o trabalho se desenvolvia a bom ritmo e já não se falava sobre aquela conversa supersticiosa do dia anterior. Certificando-se de que tudo estava em ordem o valentão encontrou o grupo de carregadeiras que seu pelotão deveria escoltar e saíram para o ar livre a passo certo.

No decorrer do trabalho, Nico notou algo fora do comum. Desviou-se do carreiro e foi verificar, como era sua prerrogativa de líder soldado. Não podia definir o que era. Algo instintivamente lhe dizia que era uma pegada, mas julgou ser impossível, porque era grande demais. Teria que ser um animal gigantesco, transcendente!

De repente, sentiu um tremor de terra distante. Tentou ignorar, mas parecia continuar num ritmo constante e estar se aproximando. Nico tremeu também por dentro lembrando-se do relato da carregadeira do dia anterior. O barulho que acompanhava o tremor foi crescendo e estava cada vez mais forte.

Nico, assustado, procurava manter o controle que tanto lhe dera fama, mas a terra balançava de tal modo que já não conseguia se manter em pé direito. Aos poucos, o tremor ou o que o causava pareceu estar ali mesmo perto dele e subitamente tudo escureceu como se o sol tivesse sido tapado quase por completo.

Apavorado e sem rumo Nico andava de um lado para o outro. Podia ver à sua frente um objeto enorme e colorido. Mas não sabia definir o que era. Seria a extremidade do homem? Seria afinal verdade? Poderia ser que sua presunção fora afinal apenas e somente isso? E o seu raciocínio vão seria no fim apenas arrogância?

Nico procurou ainda num rasgo de coragem sair do raio de ação daquele ser gigantesco mas era tarefa impossível. O medo foi tomando conta dele. Prometia internamente nunca mais duvidar, reconhecia até que devia pedir desculpas, se humilhar.

O barulho e o tremor pararam. Nico esperava em suspense e então, no silêncio aterrador sentiu que a escuridão aumentava à medida que aquela coisa se aproximava, estava já por cima dele e tudo que pôde fazer foi gritar “socorro” antes de ser completamente esmagado pelo pé do homem.

(Baseado em Salmos 14:1 “Diz o néscio em seu coração: Não há Deus”)

3 comentários:

J.F.AGUIAR disse...

Pastor Joed texto muito bom!! nós faz pensar:No mundo, sociedade e
valores,É o nosso grandioso Deus
formador de todos os reinos
Homens,natureza e animais.

Anônimo disse...

Muito edificante,
Principalmente trazendo para nosso mundo, ideal para aqueles que duvidam da existencia de DEUS.

Anônimo disse...

Lindo texto Pastor, leva o leitor ir até o fim. parabéns que Deus continue te usando de forma poderosa.