22 de abr. de 2011

A SERPENTE DE BRONZE

Milca acordou cedo como fazia todos os dias. Eram as responsabilidades da mãe da família. Seu marido ainda dormia e os filhos demorariam algum tempo até despertar. Ela cingiu-se e tomou um cesto feito de vime bem largo, mas pouco fundo. Era a medida exata para a alimentação da família durante um dia normal de semana. Com gestos mecânicos, produto do automatismo do hábito diário, ela saiu da tenda.
Estava ainda clareando no gigantesco arraial de Israel. Milhares de tendas com milhões de ocupantes no meio do deserto, no caminho do mar vermelho. Estavam nos limites da região de Edom. Tinham deixado para trás o monte Hor aonde Arão morrera e fora enterrado por ordem de Deus.

A tenda de Milca ficava a meio do arraial da tribo de Dã no extremo nordeste do acampamento de Israel segundo a disposição das tribos que Moisés ordenara por orientação divina. A mulher aproximou-se de outra tenda e chamou com voz baixa:

- Lia

Esperou pouco tempo e outra mulher surgiu do interior desta tenda com um largo sorriso nos lábios e olhar brilhante.

- A Paz seja contigo (saudou a recém chegada)

- E contigo seja a paz (retribuiu Milca)

Ela e Lia eram companheiras e amigas desde a infância. Criadas no Egito ainda lembravam-se da terra do cativeiro. Casaram-se no deserto quase no mesmo dia e já embalavam os netos apesar de terem pouco mais de 40 anos. A amizade era algo tão natural que já não sabiam viver sem a outra ali ao lado, na tenda vizinha.

Todos os dias iam juntas buscar o maná que Deus dava para a alimentação do povo no deserto. Era uma tarefa rotineira que permitia iniciar o dia com uma boa conversa. As duas seguiram em direção ao alimento por entre outras tendas armadas na vizinhança trocando pequenas informações pouco importantes da vida das respectivas famílias.

A região era árida e pedregosa. Um vento quente e seco soprava quase continuamente de leste e trazia com ele um cansaço fora do normal. A respiração parecia mais difícil neste clima inóspito e baixo desse calor opressivo. Mas a verdade é que já não se lembravam de quando não estavam no deserto caminhando de um lado para outro.

Fora do arraial pararam. Lá estava o pão do céu como todos os dias. Uma camada de farinha amarelada, quase dourada, fina e fácil de recolher que cobria a região de forma milagrosa todas as manhãs sem falha. Cada família devia tomar o suficiente para o dia sob pena de perder o excedente que se estragava no dia seguinte. A única exceção era a sexta-feira. No Sábado não havia maná, mas a dose dupla recolhida na Sexta não se deteriorava. Tudo isso, prova tão inequívoca do cuidado divino, parecia Ter perdido sua importância para o povo. Á força de ver o milagre se repetir semanas e meses a fio o tornavam banal e até cansativo.

- De vez em quando não tens vontade de comer uma coisa diferente? (perguntou Milca parando de colher por um instante).

- Como assim? (estranhou Lia).

- Comer comida de verdade. Comer algo fresco, bem suculento. Ainda não esqueci as frutas que tínhamos no Egito. A carne gostosa que é tão rara aqui no deserto. A água em abundância, o pão e os bolos dos padeiros egípcios. Estou farta de maná. São a mesma coisa todos os dias.

- Mas que mais poderíamos pedir no deserto? Esta é uma prova do cuidado de Deus. Nunca nos faltou alimento. Não devemos desprezar um milagre assim. Lembra só da quantidade de gente que se alimenta disto todos os dias.

- Sim... Todos os dias, e sempre o mesmo. E porque é que não saímos deste maldito deserto? Já vão mais de 30 anos andando aqui de um lado para outro. Às vezes acho que Moisés não sabe o que fazer. Não sabe para onde vai.

- Não podes dizer isso (reclamou Lia séria). Ele é o profeta de Deus. Além disso, é o Senhor que nos guia através da nuvem e da coluna de fogo. Não é Moisés que escolhe o caminho.

- Pois Deus poderia Ter algo melhor a nos dar. Afinal é Deus só no deserto?

- Milca! Não fale assim! Já te esqueces-te de como o Senhor nos tirou do Egito? Ainda há poucas semanas não fomos vitoriosos sobre o Rei Arade dos cananeus? Não tomamos suas cidades?

- E porque não ficamos nelas? Não eram melhores que o deserto?

- A isso não posso responder, mas a verdade é que o Senhor sempre nos protegeu e nos guiou bem. Não é agora que vou começar a duvidar dele.

- Pois eu não sou tão passiva como tu. Não vou ficar o resto da minha vida neste deserto. Já viste que quase toda a força adulta que saiu do Egito morreu neste deserto? Foi para isso que Deus nos tirou da escravidão?

- Milca, tu sabes a razão (protestou Lia ainda com paciência). Fomos nós que tivemos falta de fé e deixamos de confiar no Senhor quando era hora de conquistar Canaã. Foi essa a promessa do Senhor, que a geração adulta morreria.

- Mas começo a achar que nós também não vamos chegar a viver em Canaã. E esta tão perto!

- Deus tem seu tempo.

Milca calou-se. Gostava tanto de Lia, mas às vezes não se entendiam. A amiga era tola e ingénua. Acreditava em tudo que Moisés e os levitas falavam. Afinal, havia que questionar um pouco. Porque eram os sacerdotes tão especiais? Não eram da família de Moisés? E Levi não era a sua tribo? Muito conveniente para Ele que ficassem na direção do povo...

Lia também se manteve quieta. Ficava triste com a rebeldia de Milca. Era uma mulher trabalhadora e boa mãe, mas parecia não se submeter à lei de Deus e cumpria tudo mecanicamente. Não conseguia entender o valor do Senhor de Israel. Estava sempre a murmurar e a se lembrar do Egito. Alimentava seus ressentimentos constantemente.

A tarefa da recolha de maná acabava. Por todo o deserto à volta do acampamento viam-se pessoas recolhendo a sagrada farinha para seus familiares. As duas mulheres colocaram os cestos na cabeça e partiram em direção ás suas tendas ainda sem falar. Já perto de casa foi Milca quem quebrou o silêncio.

- Acho que alguém deveria falar sériamente com Moisés sobre esta situação. Isto tem que acabar.

Lia preferiu não responder. Já aprendera que não valia a pena argumentar com Milca, pois o que ela decidia estava decidido e pronto. As duas se separaram e o dia correu normalmente. Surgiu um boato de que um grupo de líderes tinha reclamado com Moisés sobre o maná e a constante permanência no deserto. Não constava que o homem de Deus tivesse respondido. Manso e sereno como sempre, deixara para Deus a resposta, pois na verdade era para o Senhor a questão.

E a resposta veio mais depressa do que se poderia prever. Subitamente, sem que soubessem dizer de onde, começaram a surgir serpentes abrasadoras cuja picada era extremamente dolorosa. Os répteis pareciam brotar do nada e não havia lugar seguro. Estavam por toda a parte. Dentro das tendas. Por baixo das caixas e esteiras, no interior dos cestos e panelas de barro, no meio da areia, atrás das pedras. O povo estava totalmente vulnerável.

As estórias de picadas fatais começaram a propagar-se à medida que crescia o número de pessoas mortas pelo veneno das cobras. O quadro era tétrico e aterrador. A pessoa era normalmente surpreendida pelas serpentes e atacada com violência sendo mordida uma ou mais vezes. Ao fim de dez minutos o local da mordida estava inchado por vezes em forma de bolha e com perda de sensação. A partir desse local se espalhava uma dor fina e aguda. A pessoa se mostrava em pânico e por vezes mesmo histérica. Em menos de meia hora estava corada, tonta ou até com vertigens e vomitando á medida que a tensão arterial descia.

As vitimas então se queixavam de opressão no peito com dificuldade de respirar e alguns apresentavam febre. A pele no local da mordida ia ficando pálida e com mau cheiro indicando necrose. A pessoa ficava prostrada e começava a sangrar pelo nariz, gengivas e olhos. Normalmente em menos de duas horas estava já inconsciente e morria antes de completar três horas.

Todos os esforços para fazer parar essa evolução eram fúteis e o numero de mortes cresceu em poucos dias junto com o temor das serpentes incutido no povo por todo o arraial. Constava que apenas na região da tribo de Levi perto do tabernáculo é que as serpentes não atacavam.

Alguns homens tentaram organizar grupos de caça aos répteis, mas os resultados tinham sido muito fracos, pois as cobras pareciam proliferar mais a cada dia e vários dos caçadores tinham tido a mesma sorte das vitimas incautas. Em todo o acampamento o clamor era um só, e o reconhecimento do pecado crescia à medida que aumentavam os casos de fatalidade entre o povo.

Milca e Lia também sofriam com esta situação. Também elas haviam visto as serpentes abrasadoras e tinham escapado por pouco de suas picadas mortais. Não podiam evitar a preocupação e, no entanto nada restava ao povo senão pedir a misericórdia de Deus.

Era novamente manhã e as duas amigas recolhiam como sempre o maná cotidiano tão providencial. Nesta manhã, porém, estavam mais caladas do que habitualmente.

- Ouviste sobre o Abiel? (perguntou Liz a meia voz)

- Quem? O marido da Tamar? (tentou localizar Milca)

- Sim, esse mesmo (confirmou Lia). Foi picado ontem à tarde . Dizem que durou ainda menos que os outros.

Milca abanou a cabeça indignada e como sempre reclamou:

- E será que ninguém vai fazer nada a respeito disso? . Vão simplesmente assistir ao povo sendo envenenado e morrendo? Que espécie de líderes é que temos?

- Mas já fizeram (respondeu Lia). Não ouvistes?

- Ouvi o que? Sobre o grupo que foi a Moisés?

- Fazer o que?

- Confessar o pecado do povo e pedir a Ele que intercedesse por nós a Deus. Afinal foram as nossas murmurações que trouxeram as serpentes. Foi um castigo para nossa rebeldia e ingratidão para com o Senhor.

- Lá estas tu outra vez (reclamou Milca). Mas o que foi que Moisés respondeu?

- Ele orou a Deus.

- Como sempre...

- E o Senhor respondeu. Será que ninguém te contou?

- Não ouvi nada.

- Bem, o que me disseram ontem à noite é que Deus deu a Moisés a incumbência de fazer uma serpente semelhante as que andam por aí e colocá-la sobre uma estaca. Dizem que todo aquele que for mordido por uma cobra e olhar aquela serpente viverá. Moisés então uma serpente de bronze e a levantou lá no arraial de Levi perto do tabernáculo.

- Essa é a solução? (disse Milca indignada). Então não havia coisa melhor a fazer? Porque não nos deu Moisés um remédio fácil que nos cure dessas malditas mordidas. Porque não nos deu um veneno que mate as cobras ou armadilhas para as apanharem? Porque não vamos embora deste deserto horrível onde moram estas cobras? Ou então, já que Moisés é tão íntimo de Deus, porque não ora simplesmente e pede a Deus que acabe de uma vez com essas cobras?

Milca parecia enfurecida. Sua rebeldia crescia de dia para dia em vez de diminuir. O castigo pelo pecado de que ela também era culpada parecia não Ter lhe trazido qualquer convicção de pecado. Apenas queria o lado bom da aliança, as bênçãos. Não estava disposta a suportar a parte da obediência e do compromisso. Esbravejou mais um bocado sobre o ridículo que lhe parecia ser a solução de Deus por Moisés e então parou de falar.

- Bem (iniciou Lia com calma). Não sei bem porque o Senhor deu essa solução a Moisés, mas foi o que ele mandou. Ele é nosso Deus e devemos obedecê-lo.

- Pois me parece uma solução bem pouco criativa e muito inconveniente para nós!

- Mas é eficaz segundo dizem. Já esta manhã eu mesma ouvi de pessoas que foram mordidas e olharam a serpente de bronze e ficaram curadas.

- Mas teve que se deslocar uma distância enorme até o local da estaca que esta convenientemente dentro do acampamento de Levi. Para nós são quase cinco quilômetros.

- No entanto, é isso ou a morte!

- Não sei se é tão simples assim. Duvidas de Deus?

- Talvez de Moisés e seus artifícios.

- Ele sempre nos guiou bem...

Milca calou-se. Mais uma vez preferia ficar com sua opinião e deixar a amiga piedosa pensar o que quisesse. Ela é que não queria ouvir falar de andar até o tabernáculo por causa de uma mordida. Aliás, ela era cuidadosa e não seria picada. Não tinha nada a ver com a ralé do povo que mais precisava mesmo era de um corretivo.

A tarde chegou e o sol declinou trazendo o inicio da noite. Lia foi preparar a refeição noturna e assim que acendeu o fogo uma pequena serpente pulou das chamas e a mordeu na mão. Ela gritou de dor e abafou a mão com um pano enquanto via a cobra fugir por baixo da tenda para fora. Primeiro se desesperou com a dor local e o inchaço. Colocou a mão na água e tentou esfregá-la, mas a dor crescia e parecia se espalhar pelo braço até o ombro ardendo muito na axila. Ela estava sozinha em casa e não hesitou. Tomou um archote e saiu.

Mal saíra encontrou o marido de Milca que a procurava. A amiga acabara de ser picada e pedia ajuda. Lia mostrou a mão que começava a inchar visivelmente ao homem horrorizado. Na entrada da tenda de Milca ela surgiu arrastando a perna e a mancar um pouco.

- Eu vou até a serpente de bronze (declarou Lia com resolução na voz).

- Fui picada no pé, não posso andar (reclamou Milca)

- Posso te carregar (disse o marido solicito). Peço o burro do Jacó emprestado.

- Não (respondeu Milca peremptória). Vou colocar um remédio egípcio contra mordida de cobra que me ensinaram hoje à tarde. Dizem que é muito bom.

- Milca (lia falou contendo a dor). O único meio é a serpente de Bronze.

- Então vai andando (desdenhou a outra e se virou entrando na tenda).

Lia tinha lágrimas nos olhos. Por um lado por causa da dor que sentia, por outro porque sabia que Milca estava arriscando demais. Mas a verdade do momento é que ela não podia parar para discutir. Tinha que tratar de sua própria situação, que era tão grave e urgente quanto à da amiga. Ela começava a se sentir fraca e um pouco tonta. Tinha náuseas e dificuldade em caminhar, mas seguiu em direção ao centro do arraial.

De longe se podia ver a gigantesca tocha de fogo que pairava sobre o tabernáculo durante a noite e iluminava tudo em redor. Para Lia aquela presença significava a prova da realidade de Deus e de seu interesse no povo e nesse momento isso era uma parte importante da esperança que a movia para além das dores .

Ela caminhava com dificuldade e cambaleante. O braço estava pior. Parecia como se toda a pele fosse saltar a qualquer momento. Cada passo agravava sua dor, numa agonia que crescia de intensidade rapidamente.

Pelo caminho podia ver pessoas que na mesma situação que ela se arrastava em direção ao salvamento anunciado. Outras eram carregadas e em muitos locais ela podia ver os sinais de luto com gente chorando e se lamentando por alguém que não tivera tempo de chegar à serpente de bronze.

Já perto de perder os sentidos Lia avistou a estaca com a cobra forjada por Moisés. Estava bem alta e era iluminada pela tocha da presença de Deus. Não era bonita. Não era nenhuma obra de arte. Não era um nenhum sentido aparente, especial ou diferente. Apenas uma tosca imagem de serpente sobre uma estaca de madeira.

Ao olhá-la Lia não sentiu nada de especial. Nem notou que a dor diminuísse. Mas ela creu! Ela creu firmemente que aquele era o caminho que Deus preparara e que estava curada, apesar de, no momento, não sentir nenhuma melhora.

Sentou-se um tempo na areia ainda quente do dia e olhou o estranho símbolo da cura divina para o povo. Começou então a chorar. Primeiro de forma suave, depois copiosamente. Chorava não de dor ou de alivio, mas de arrependimento. Sentia a maldade do seu pecado e do povo. A murmuração e rebeldia a incomodavam mais que a picada e o braço edemaciado. O choro durou bastante tempo. Ela prostrou-se no areia confessando seu pecado e pedindo perdão.

Por fim, sem ter a noção de quanto tempo se passara, levantou-se com esforço e começou o caminho de regresso para sua tenda. Nada mais havia a fazer.

À medida que caminhava percebeu que os passos já não eram tão dolorosos. O braço já estava claramente menos inchado e movimentava os dedos mais facilmente. Um pouco mais adiante e já não tinha aquela dor, podia respirar normalmente e sorvia grandes golfadas de ar como que redescobrindo o valor de um fôlego normal. Começava a sentir uma alegria enorme, uma paz profunda. Sabia que estava curada!

Antes que pudesse racionalizar o sucedido encontrou-se correndo em direção à sua tenda. Precisava contar a Milca que a salvação estava lá, tão perto, tão fácil, tão gratuita. Tão completa!

Porém, ao chegar à tenda da amiga encontrou seu marido em prantos no lado de fora com a roupa rasgada e o cabelo desgrenhado. De dentro da tenda vinha o choro metódico e lamuriento das carpideiras e os soluços sinceros dos filhos de Milca.

Ela não precisou perguntar para saber o que sucedera. O remédio egípcio falhara. Lia estava viva e Milca... Morta.

(Baseado em Números 21:4-9)